sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
Aquele repleto de sabedorias alheias...
Há um tempo atrás, comprei um livro de contos de um autor que eu amo. O livro traz a seguinte história:
“Dois números menor.
Certa manhã, um homem entrou numa loja de calçados e um vendedor amável foi a seu encontro.
- Pois não, senhor?
- Queria um par de sapatos pretos como aquele da vitrine.
- Pois não, senhor. Seu número deve ser 41, certo?
- Quero um 39, por favor.
- Desculpe-me, senhor, trabalho nisso há 20 anos e posso afirmar que seu número é 41, talvez 40...
- Quero um 39, por favor.
O vendedor, entre resignado e surpreso, foi buscar um par de sapatos número 39, percebendo que o homem deveria estar comprando para outra pessoa.
- Senhor, aqui está.
- Por favor, me empreste o calçador.
- O senhor vai calçá-los?
- Vou, claro.
Depois de várias tentativas, o cliente finalmente conseguiu enfiar os pés dentro dos sapatos. Com queixas e gemidos, deu alguns passos pelo tapete.
- Ótimo. Vou levar.
O vendedor sentiu os próprios pés doerem só de imaginar os dedos apertados dentro daquele sapato pequeno.
- É para presente?
- Não, obrigado. Vou com eles.
O cliente saiu da loja e caminhou com dificuldade os três quarteirões até o banco, onde trabalhava como caixa. Às quatro da tarde, depois de mais de seis horas usando os sapatos, seu rosto parecia deformado e os olhos estavam vermelhos e lacrimejantes.
Seu colega, no caixa ao lado, ficara olhando para ele a tarde toda e se mostrava preocupado.
- O que você tem? Está se sentindo mal?
- Não. São os sapatos.
- Qual é o problema dos sapatos?
- Estão apertados.
- E por quê? Estão molhados?
- Não, é que são dois números menores...
- De quem são?
- Meus.
- Não entendo... Não te machucam?
- Sim, estão me matando...
- E aí?
- Vou explicar – disse o homem, engolindo saliva – Tenho poucas satisfações na minha vida. Ultimamente tenho tido poucos momentos agradáveis também.
- E...?
- Eu sofro com estes sapatos. Sofro como um condenado, é verdade... Mas daqui a pouco, quando chegar em casa e tirar os sapatos... Você não imagina o prazer! Que prazer, cara! Que prazer!” (BUCAY, J. As histórias que me ensinaram a viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2012, p. 36-37)
Li-o e senti, com perplexidade, a estupidez à qual nós muitas vezes nos submetemos. Cheguei da terapia, minha internet sem funcionar direito (droga GVT! Todo dia agora?), abri o jogo Paciência no computador e comecei a jogar, pensar, relembrar as coisas faladas e deixar as gestalts acontecerem. E na mesma hora em que cheguei à seguinte conclusão: “não trabalho por prazer, sofro para poder pagar pelo meu prazer” veio à minha mente essa história que transcrevi acima. Estranho isso. Nunca me imaginei neste papel, e perceber tal comportamento faz com que eu me sinta completamente estúpida. Sabe aquela dúvida cruel que nunca dá trégua até que chutemos o pau da barraca, derrubemos a mesa e ponhamos os pingos nos “is”? Pois é. Estou repleta dela agora. O que fazer? Essa é mais difícil do que escolher entre casar ou comprar uma bicicleta! Risos... Brincadeiras à parte, é muito complicado falar de trabalho, mais complicado ainda é perceber um certo desgaste nesse quesito e não poder, ou querer, resolver instantaneamente. Preciso do trabalho, por N motivos, simples e resolutamente assim.
Para agregar mais valor a este post repleto da sabedoria de outros autores, compartilho o texto do amigo de uma conhecida, que consolou a ela e que me consola sempre que estou em crise profissional:
“Você acha que o caçador Maori gosta de sair todos os dias, e andar vários quilômetros no sol escaldante atrás de uma avestruz, para depois arrastá-la nos ombros de volta? Não. Aposto que se tivesse o poder da escolha e do conhecimento, compraria seu almoço no mercado mais próximo. No entanto, sou capaz de apostar que ele nunca se questiona da necessidade de buscar o alimento. Claro que ele prefere ficar a noite em volta da fogueira com seus amigos e contar histórias, enquanto bebe uma mistura alucinógena e sonha com seus antepassados. No entanto, ele tem que caçar para manter-se vivo. A parte digamos "chata" é justamente o que lhe permite ter bons momentos na vida. É comum termos a ilusão de que por tratarem-se de artistas, levaram uma vida de contemplação e gozo, produzindo apenas o que lhes conviessem. A verdade é bem diferente, basta ver alguns exemplos da história: Van Gogh, as vezes usava o dinheiro da comida para comprar suas tintas; Caravaggiano passou vários anos pintando retratos de nobres (que ele odiava) só para pagar suas dívidas; Michelangelo teve que aturar vários palpites da igreja na pintura da capela Sistina.Existe um pensamento que é extremamente forte e difundido em nossa era: você tem que sentir prazer o tempo todo. Se você não sente prazer o tempo todo, você é nada. Basta olhar em volta, todas as mensagens que recebemos da publicidade - e a publicidade é a maior influência que temos no mundo contemporâneo - dizem o mesmo: sorria, seja feliz. Seja feliz lavando as roupas, seja feliz comprando carros, seja feliz comendo salada, sorria quando comprar na C&A. O grande choque é que nossa vida simplesmente não é assim. Nem nunca será. O resultado é exatamente o que ocorre com você, comigo e com quase todo mundo da geração dos anos 90: pessoas que simplesmente não toleram a adversidade.Todo esse papo furado, pode ser resumido em duas linhas: não fique tão mal pelo trabalho chato, a maioria dos trabalhos é assim mesmo, chato. Mas você precisa dele. Sua arte depende dele.”
É, minha gente, o misto de emoções que essas duas leituras me causam é muito forte. Forte também é a percepção da postura de masoquismo escolhida por mim para lidar com alguns papéis. Sei que existe uma longa distância entre a profissão que sonhei durante a faculdade e o trabalho que me proporciona sobrevivência hoje. Mesmo estando trabalhando em um serviço que sempre sonhei, meu olhar vai além e seleciona vivências que me põem em desânimo profissional e pessoalmente. Hoje vejo que são escolhas que faço, talvez como o personagem da primeira história, para ao chegar em casa poder tirar o sapato e gozar o prazer da liberdade. Mas será mesmo que o prazer da liberdade, e tantos outros prazeres, só podem ser desfrutados mediante situações de sofrimento e desgaste extremos? Mais uma pergunta para minha coleção e mais uma percepção da qual quero tirar um aprendizado e melhorar minha conduta diante da vida e de mim.
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