terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cada cicatriz...

Eu acordei e estava num lugar escuro, gelado. Havia pessoas em minha volta, mas eu me sentia irremediavelmente sozinha, muda, dormente. Eu tremia de frio, pedia abrigo, agasalho, mas na dimensão em que eu estava as coisas se passavam em outro ritmo.

Daí eu acordei e tinha uma cicatriz em mim, uma não, várias. Era tão grande e violenta que atravessava a pele e se mostrava na superfície, à flor da pele. "Sim, deu tudo certo. Seu útero está aí, são e salvo", repetia uma amiga ao me ver confusa e incrédula.

Eu acordei várias vezes de um pesadelo terrível, em que me cortavam, e minha primeira reação era procurar a cicatriz, e ela estava lá. E o luto não cessava, já não pela carne, mas pelos afetos violados, pela nudez do olhar, pelo silenciar da palpitação.

Fria, inerte, apagada, hipotensa, assustada, chorona. Não sozinha. Eu estava lá.

“A mais carinhosa também é a mais bruta, a mais inteligente é ao mesmo tempo a mais sensível, a mais bonita é a mais emburrada, a mais esperta é ao mesmo tempo a mais mundo da lua, a mais bem humorada também é a mais chorona, a mais falante é ao mesmo tempo a mais secreta, a mais velha é ao mesmo tempo a mais moleca, a mais moça também é a mais madura , e uma não vive sem a outra." 
(Martha Medeiros)

Eu acordei e estava inteira de novo. Sonhava, sorria, respirava, palpitava, inflamava e ardia. Eu estava lá, mas já não era eu, era outra. Simplificar.

Eu acordei e percebi que se leva uma vida inteira para ser quem se é e que não há tempo a perder. Aprendi que olhar para os lados pode ser enriquecedor. Que arriscar pode render boas histórias. Que amar pode doer e que não amar dói mais ainda. Aprendi não, tenho aprendido. Estou a caminho. Estou me fazendo. 

Eu acordei querendo matar a saudade que sinto, de tudo aquilo que ainda não vivi. Acho que não custa nada arriscar. Não se perde por amar, perde quem não consegue receber o amor. Simplificar.

Eu acordei e resolvi aparar os excessos, cortar o cabelo, abrir minhas entranhas - meu peito, meu coração, minha confusão - para mim. A brigar comigo mesma, mas me aceitar. A ter medo, mas marcar o encontro desejado. A sentir vergonha, mas tentar. A ter raiva, mas não me deixar dominar pelo medo. A ser patética, mas me perdoar TODAS AS VEZES.

Eu estou aqui. Acordada. Insone. Lúcida. Intensa. Dramática. Feliz. Assanhada. Inteira. Sem arrebatamentos que me impeçam de querer ser arrebatada. Com sede de água e, mais ainda, de infinito.

"Moço, não retoque minhas fotos, cada cicatriz tem sua história..."

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